Desta janela em que escrevo, vejo os comboios a passar lá em baixo, não muito longe de mim, mas daqui quase não os escuto, no entanto há casas que estão mesmo coladas a linha-férrea.
Antes, admirava-me como conseguiriam essas pessoas dormir, agora já não, porque falei com algumas e revelaram-me o segredo:
“Nos primeiro dias ninguém pára, mas depois a gente habitua-se, já nem se dá conta”, disseram-me elas.
Eis a maravilhosa capacidade de nos habituarmos.
Mas depois, pus-me cá a pensar na nossa vida e prefiro chamar-lhe assim:
Eis a perigosa capacidade de nos habituarmo-nos, porque o barulho dos comboios é como tu, quando nos conseguimos habituar deixamos de dar conta e vejo que nos costumamos habituar a coisa de mais.
O hábito faz-nos perder a atenção dos acontecimentos, rouba-nos o gozo das novidades e o sabor irrepetível dos dias, e impede-nos de crescer.
As pessoas habituam-se a viver juntas e deixam de prestar atenção umas as outras. Um casal habitua-se ao casamento e perdem o gozo do namoro, esquecem a necessidade de se seduzirem todos os dias, habituam-se e esquecem-se que têm que se pedir um ao outro de novo em casamento em cada manhã.
Deixamos cair até a nossa fé na rotina do hábito e tudo se vai tornando estéril.
Vamos cumprindo rituais aos quais chamamos Obrigações e Deveres, vamos habituando a cumpri-los mas sem percebermos verdadeiramente para o que servem.
Habituamo-nos a ser o que somos e deixamos de sonhar em ser mais.
Habituamo-nos ao ritmo quotidiano a que chamamos vida e deixamo-nos engolir por ele.
Habituamo-nos ás correrias,
Habituamo-nos ás inutilidades sempre tão urgentes,
Habituamo-nos a andar tristes,
Habituamo-nos a encher a boca de queixas e lamentos,
E assim, deitamos fora a vontade de mudar e viver de novo cada dia que nos calha em sorte.
E depois, depois ainda somos capazes de dizer com o rosto triste e um encolher de ombros derrotado “ É a Vida, temos que nos habituar.”
Não, não Amigo, para ser VERDADEIRAMENTE VIDA, TENS É QUE TE DESABITUAR!
By Rui Santiago
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